quarta-feira, 27 de abril de 2011

sábado, 16 de abril de 2011

FIAPO DE TRAPO

FIAPO DE TRAPO
Ana Maria Machado
Espantalho mais bonito e elegante nunca se tinha visto por aquelas redondezas. Nem por outras,
que ele era mesmo carregado de belezas. Precisava só ouvir a conversinha do Dito Ferreira enquanto
montava o espantalho, todo orgulhoso do seu trabalho:
- Nunca vi coisa igual. O patrão caprichou de verdade. Vai botar no campo um espantalho com
roupa de gente ir à festa na cidade.
E era mesmo. Tudo roupa velha, claro, como, convém a um espantalho que se preza. Mas da
melhor qualidade, roupa de se ir à igreja em dia de procissão e reza.
Dito Ferreira mostrava todo prosa:
- Esse chapéu é de um tal de veludo. E vejam que beleza essa camisa cor-de-rosa.
Tem até coração bordado... O patrãozinho pensou em tudo. Com uma gravata de seda, fez esse
cinto estampado. Até a palha do recheio é toda macia e cheirosa.
Não é que era mesmo, a danada? Tinha um perfume forte, que ajudava a espantar a passarada.
Ah, porque é preciso também dizer que aquilo tudo dava certo, funcionava tanto... O espantalho
elegante era mesmo um espanto. Passarinho nem chegava perto. E lá ficava sozinho, espetado no
milharal deserto.
O patrão ficava feliz com um defensor tão eficiente. Dito Ferreira se alegrava com aquela figura
imponente. Que espantalho diferente! Só que eles nem sabiam que diferença era essa.
Como todo espantalho, esse não andava nem falava, mas tinha o dom de poder sentir as coisas
ao seu jeito – para um boneco de palha, isso era um grande defeito.
E era só por causa do desenho que tinha bordado no peito. Linhas de cor em forma de coração –
e pronto, lá estava o pobre espantalho sofrendo com a solidão! Ninguém se aproximava dele, ninguém
fazia um carinho, e ele ficava tão triste, só, espantando passarinho...
De longe via uma passarada, de todo tipo e feição. Pintassilgo e saíra, cambaxirra e corruíra,
rolinha e corrupião. Pássaro de toda cor, de todo canto e tamanho, de todo a-e-i-o-u - sabiá, tié, bem-tevi, curió e nhombu. Vontade de chamar:
Vem cá me ver, bem-te-vi!
Vontade de mostrar:
Tico-tico, olha lá o teco-teco!
Mas não adiantava, ninguém chegava perto.
E o tempo passava. Horas e dias, dias e semanas, semanas e meses, meses e anos.
E o espantalho ficava no tempo. No bom tempo e no mau tempo. No sol que queimava e na
chuva que molhava. No mormaço que fervia e no vento que zunia.
E seu cheiro se gastava, sua cor se desbotava, sua seda desfiava, seu veludo se puía.
Até que um dia...
No tempo tem sempre um dia. Um dia em que muda o tempo e um tempo novo se inicia.
Pois foi o que aconteceu. Houve um dia em que choveu. Mas não foi chuva miúda, foi pra valer,
de verdade, foi mesmo um deus-nos-acuda, uma imensa tempestade, de granizo, raio, vendaval, com
aguaceiro e temporal, chuva de muito trovão que virou inundação.
Quando a chuvarada passou e o sol voltou, um arco-íris no céu se formou. E na beleza do dia
novo, azul lavado, vieram os pássaros, em bando assanhado, ocupando todo o campo, ciscando no
milharal. Livres, soltos, à vontade, numa alegria sem igual.
Foi aí que Dito Ferreira reparou:
Cadê o espantalho velho?
Saiu todo mundo procurando. Não acharam. Nem podiam achar. Ele tinha desmanchado, tinha
sido carregado, pelo vento espalhado, pela chuva semeado, com a terra misturado, plantado naquele
chão, sua palha adubando muito pé de solidão.
Do que sobrou por aí, foi tudo virando ninho, protegendo com carinho filhotes que iam nascer.
Veludo em trapos, seda em farrapos, coração bordado em fiapos, maciezas boas de se esquecer.
E hoje em dia, sua palha misturada na terra ajuda a plantação a crescer.
Os trapos de sua seda, o seu forro de bom cheiro, farrapos de seu veludo se espalhavam desde
o galinheiro até a mais alta árvore que tenha um ninho barbudo. E em cada ovo que nasce ali por aquele
lugar, cada ninhada que se achega à procura de calor, em cada vida a brotar, em cada marca de amor,
seu coração sobrevive num fiapinho de cor.
Machado, Ana Maria. Quem perde ganha. Nova Fronteira, Rio de Janeiro. 1985.

Texto trabalhado com meus alunos.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Caminhando



Tentando entender relações entre TEMPO E ESPAÇO dentro de histórias de vida que se baseiam entre COMEÇO e FIM no mesmo corpo, para que depois seje possível ignorá-las totalmente e apenas seguir adiante sem pensar em questões memoriais no mesmo plano do que puramente É, ou no que passou a ser,nem no que foi... e nem no que virá a ser...

... ...

Pois seus passos marcarão caminhos sem que você o planeje,então só nos resta decidir e viver.Mas viver buscando "respirações profundas", e decidir com atitude, possuindo a responsabilidade de continuar algo que "outros que passaram por aqui" iniciaram, mas dessa vez a sua maneira com sua própria essência e cabe a cada um se encontrar e dar valor a isso.Do contrário passará pela vida como "erva daninha".




segunda-feira, 4 de abril de 2011

Três Dias Para Ver Helen Keller

Três Dias Para Ver

Helen Keller


O que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?

Helen Keller, cega e surda desde bebê, dá a sua resposta neste belo ensaio, publicado no Reader's Digest (Seleções)


Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. "Nada de especial", foi à resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo tacto encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero de um pinheiro.
Na primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
Às vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias.
Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um amigo pelas "janelas da alma", os olhos. Só consigo "ver" as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
O primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros mais profundos da vida humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottie terrier e o vigoroso dinamarquês.
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não conseguiria dormir.
No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra adormecida.
Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali meus olhos veriam a história condensada da Terra -- os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Minha parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas esculpidos da antiga terra do Nilo. Já senti pelo tacto as cópias dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu a cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo tacto. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão fascinante.
À noite de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet ou o tempestuoso Falstaff no colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso.
Imagino que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a emoção de ver a graça em movimento.
Na manhã seguinte, ávida por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora. Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas, tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação e me orgulho. Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse enxergar, eu seria como a maioria das mulheres – interessadas demais na moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa.
Da 5ª Avenida dou um giro pela cidade – vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo visitando os bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa descobrir como as pessoas vivem e trabalham, e compreendê-las melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas restantes, mas acho que na noite desse último dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria visto tudo que queria ver. Só quando as trevas descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Mas sei que, se encarasse esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse em seu campo visual.
Então, finalmente, você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos.
Ouça a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objeto como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem ao máximo todos os sentidos; goze de todas as facetas do prazer e da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contacto fornecidos pela natureza. Mas, de todos os sentidos,
estou certa de que a visão deve ser o mais delicioso.

Fonte: www.lerparaver.com (Site na qual se trata da deficiência visual)

Texto: Seleções Reader's Digest - Junho/2002
Cortesia de José Pedro Amaral


Apenas meu ponto de vista diante dessas belas palavras


Já pararam pra pensar quantos não sabem apreciar a vida por não explorarem de outras formas de ver?

Particularmente acredito que se soubesse que iria perder a visão a primeira reação seria o desespero, a segunda seria com certeza descobertas a terceira me colocar na posição de seguir opções.

Pergunto-me então: O que é apreciar? Essa é uma questão a ser pensada e vivida, por isso compartilho dessa postagem sem maiores argumentos, apenas o que esse depoimento me faz pensar, pois limitados ou não sempre existe uma “desconexão de si próprios que está invisível” da qual não arriscamos em descobrir com medo do “novo”, então simplesmente as ignoramos ou até mesmo rejeitamos o meio. Mas... Por que ignoramos o meio?! Talvez nos faltem sensibilidade e coragem de “ver”, pois, “ver” já é o primeiro passo para percepção em seguida, apreciação que se tornam fundamentais para nossas vidas já que Deus nos deu habilidades, liberdade e maravilhas para que possamos passar por aqui e apreciar e para nos espelharmos, isso ao mesmo tempo nos leva a um expandimento que assusta por que o espaço se torna muito grande. Por isso somos “roteiristas” insistimos em ver da mesma forma que queremos enxergar, e não como pode ser mais explorados mesmo que corramos riscos, mas que não passamos por determinadas situações e lugares sem experimentamos, nos apropriando de sentidos. Por onde passar tentarei me dedicar a “olhar” e me lembrarei desse depoimento em ligação com o filme “ensaio sobre cegueira”, “Janelas da alma” dentre outros como flechas de indicação em meio ao enorme espaço escuro que nos deixam muitas vezes perdidos.